Temor e Tremor

Um bom livro é uma lição de vida

Ler um livro escrito em língua estrangeira é um desafio que eventualmente merece ser enfrentado. Desenvolvem-se conhecimentos lingüísticos e aproveita-se uma obra que poderá valer o sacrifício. Com certeza talvez seja necessário um ou mais dicionários e mais tempo para ler correndo-se o risco do entendimento errado.
Viajando comprei um livro cujo título é “Crainte et Tremblement” de Soren Kierkegaard (Rivages poche / Petit Bibliothèque). De tanto ouvir de minha esposa fazer comentários sobre este autor e a Escola de Frankfurt, não resisti. Gastei 9,45 Euros e comecei a decifrá-lo.
O começo do livro foi gasto por introduções e prefácios que normalmente reluto ver, antecipam conclusões e simplificam demais. O texto principal começou com axiomas não tão evidentes para mim e naturalmente, ao longo do livro essas afirmações ganharam outras formas, sempre passíveis de contestações, dependendo da visão filosófica do leitor.
O livro, que em Português possui o título “Temor e Tremor”, publicado em 1843, trata das hipóteses de raciocínio e decisões de Abraão diante da ordem que lhe foi dada por Deus para sacrificar seu único filho Isaac. O resultado é uma seqüência de conflitos de consciência geniais, tudo mostrando a solidão do homem diante de situações em que precisa optar por caminhos que, entre um e outro, o custo pode ser elevadíssimo.
Filósofos usaram esse livro como base ou referência para seus estudos; lendo-o com atenção podemos recomendá-lo para candidatos a gerentes, a cargos de liderança. Afinal, qual é a capacidade de um ser humano sacrificar outro(s)? Pior ainda, qual é a força para eventualmente “destruir” um amigo?
Essa obra literária merece ser analisada em escolas de administração de empresas e em cursos para executivos. No livro basta substituir nos axiomas e afirmações os verbetes Deus por chefe, governador, presidente etc., Isaac seria o subordinado, o colaborador como gostam de dizer, o povo é o cliente, o consumidor, o expectador, a família.
O básico, ao contrário de muitos que colocam questões de gerência dentro de lógicas determinísticas, é lembrar o isolamento de quem decide, a angústia, a vontade de agir de acordo com um ou outro padrão. Por mais que o indivíduo seja poderoso, ele é muito pequeno, fraco diante do chefe, mais ainda de sua consciência, da qual não poderá fugir nunca.
Para quem não é iniciado, ler livros de filosofia e assemelhados é algo difícil, mais ainda quando se tem na cabeça uma profissão das “artes exatas”.
A vida nada tem de precisa, linear, clara e lógica. Seres humanos, sensíveis ao ambiente, passíveis de hormônios e tensões imprecisos, cada um com uma coleção de experiências que servem de base de programação pessoal, tudo subordinado à capacidade de processar informações, infinitamente variável de indivíduo a indivíduo, tudo isso cria opções que dão à humanidade um colorido especial.
Kierkegaard sofreu e escreveu muito, talvez por isso tenha, graças à inteligência excepcional que possuía, construir uma obra tão complexa e interessante, complexa se mergulharmos em suas elucubrações sobre a vida de Abraão e interessante na medida em que pudermos transpor os limites do espaço que construiu à sua época mais do que romântica.

Cascaes
29.7.2009

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